quarta-feira, 19 de março de 2008

Música, escargots e Angu...

Sempre que escuto alguém falar de música de "qualidade", música "boa", em comparação com alguma outra forma de música considerada "ruim" ou de má qualidade, eu começo a pensar em comida.
Não exatamente porque esteja com fome, mas porque, pelo alto grau de subjetividade envolvido no ato de comer e ouvir música, as classificações tornam-se praticamente inúteis e com doses de prepotência intelectual e gastronômica/cultural.
Ultimamente por exemplo, tenho lido em vários jornais e revistas que a bossa nova seria uma forma de música hierarquicamente superior à música sertaneja, considerada por experts como uma forma brega, harmonica e melodicamente pobre, e portanto, sem valor.
Voltando as comidas então, quem em sã consciência poderá afirmar que um prato feito com escargots e trufas seja superior ao angu do Gomes por exemplo? Como se comparar dois tipos de alimentos tão distintos? Quer dizer que se eu gosto de angu (aliás, não gosto) mas não aprecio escargots, isso significa que não entendo de culinária e que não sei o que seja a boa comida?
Nunca é tarde lembrar que, tanto para ouvir música quanto para comer, não é necessário conhecimento intelectual algum. O sujeito prova o alimento, e gosta ou não gosta. Ele ouve uma música, ela faz bem a ele ou não faz.
Obviamente que o aspecto da cultura em que esse sujeito vive influenciará seus gostos individuais, e que alguns alimentos (como vinagre, por exemplo) necessitam de algum tempo para serem devidamente aceitos pelas papilas gustativas do sujeito. O mesmo, óbvio, vale para os ouvidos. Algumas músicas de fato necessitam de mais tempo para serem assimiladas. Mas tanto pode ser uma do Tonico e Tinoco quanto alguma sinfonia dodecafonica de Schoenberg.
Quem assistiu ao filme sobre Zezé de Camargo e Luciano, deve ter percebido, entre vários outros aspectos, que a música sertaneja está totalmente embebida na cultura daquelas regiões, faz parte dos hábitos e modos de ser de uma enorme quantidade de brasileiros. E mais, ela é tão brasileira quanto o samba, o forró e a bossa nova.
Assim, supor que a bossa nova é "superior" a música sertaneja é o mesmo que supor ser o escargot um alimento "superior" ao angu, porque o processo de cozimento é mais sofisticado ou qualquer outra forma de explicação racionalizada.
Nessas horas me vem a cabeça as classificações feitas pelos colonizadores europeus na África, no século XIX. Quando referiam-se aquelas culturas usavam termos como, selvagens, primitivas, e que por estarem em um estágio de desenvolvimento abaixo dos padrões europeus necessitavam de um aprendizado para deixarem de ser selvagens e tornarem-se civilizados.
Esta forma de pensar que ficou conhecida como etnocentrismo, hoje em dia não é muito bem vista pelo mundo afora, então para quê sermos etnocentristas culturais, musicais ou culinários?

7 comentários:

Unknown disse...

Bom, resolvi dar um alô em forma de pitaco...
Graças ao alvoroço promovido pela imprensa, que de uns tempos pra cá cismou de ter memória seletiva, a bossa nova está mais evidente que larva de mosquito em sucatas da prefeitura. Com ela surgem discussões do que possa ser genuinamente brasileiro ou digno de sê-lo. Porra, se o próprio samba, "a música brasileira por excelência" é um misto de vários ritmos e, ao contrário do que o senso comum acredita, possui sim, influência de ritmos europeus em sua árvore genealógica, por que é que o rock & roll tem que ser diminuído o tempo todo? Ainda mais agora em que a "casta" humana-universitária resolveu, não se sabe o porquê, adotar o samba "de raiz" (tem que ser da década de 80 pra baixo) como trilha sonora das festinhas. Como diria o sociólogo franco-nipônico Pierre Bourdieu, o diagnóstico para essa crise que a molecada neomalandra tem passado poderia ser um caso de muita boa vontade cultural. Um sintoma forte dessa crise seria o caso de torcer o nariz para qualquer rodinha de pogo que se forme em seu território, apesar de outrora ter participado de alguns, preferindo um sambinha cansado do Chico Buarque ou do Cartola.
É bom lembrar que de vez em quando o Funk carioca entra na jogada (só porque é exótico). Vai entender...

Ai, ai... essas crianças!

Grande abraço Mr. Slide.

Crotti disse...

Muito bom o texto ! É isso aí. O paladar é individual ! Este lance de ser melhor ou não é estranho. Tem gente por aí que acha que é superior por ter dinheiro ou uma cultura diferenciada. Mas o bonito mesmo é conhecer de tudo um pouco e saber admirar as diferentes modadlidades musicasis que existem pelo mundo afora e principalmente no nosso país !

Abração

Luigi disse...

Grande texto. Excelente. concordo plenamente com esse conceito que pode inclusive, na minha opiniao,ser aplicado ao conceito de "conhecimento" vs. "ignorancia": uma pessoa estudada, o que faria com o seu "conhecimento" se for largado no meio do sertao ou no campo ou na floresta? o primeiro conhecimento do homem foi plantar um alface um grao de trigo. isso tb è conhecimento.... nao menos importante do que o conhecimento universitario. Socrates dizia aos sofistas: de que adianta estudar os astros do cèu se a gente nem conhece a gente mesmo?

è isso aì otavio. vc um dia ia ser meu prof de blues! mas vim parar aqui na italia, onde to trabalhando e vivendo.......

vlw!
Luigi

isabel nascimento disse...

Oi, Otávio...
acabei de sair do Sesc - SANTOS - que maravilha !!!!!
e por esses tempos tenho pensado muito nessa questão do gosto-padrão - do que é "bom", pior, evoluído, etc..gostei muito do texto...
bjs bjs Bel

daniel.arantes disse...

escargot pra mim é lesma...
prefiro angu mesmo. Pronto.
Angu me lembrou de certa forma de cerveja...polenta frita com cerveja...
cerveja me lembra blues.
Blues Etílicos!
Otávio tirei umas fotos bem bacanas do show de vocês em Rio das Ostras...queria te mandar umas.

Daniel

Raquel disse...

Olá Otávio!

Primeiramente, parabéns pelo trabalho no Blues Etílicos. Sou uma grande apreciadora das músicas e da simpatia de vocês nos palcos!

Seu texto de fato nos faz pensar em muitas questões. Também lido muito com esta questão da alteridade, de como enxergar e julgar o outro (faço história), no entanto, creio que a questão se complica um pouco quando pensamos se devemos respeitar TUDO o que aparece por aí. Você comentou sobre a questão do preconceito aos povos colonizados, por exemplo. Concordo com você. Mas como fazemos com as mulheres em diversas culturas que continuam sendo espancadas, algumas tendo seu clitóris arrancado para não sentirem prazer? Devemos respeitar e não nos intrometer? Difícil questão. Da mesma forma, podemos ver isso na música, dependendo do seu contexto, é claro. Como encarar uma música extremamente patriótica que exalta a força militar na ditadura de um país? Foda né. Concordo com você que cada um tem a liberdade de escolher se alimentar daquilo que mais agrada, mas garanto que se todos tivessem o mínimo de noção do contexto em que se encontram, ninguém aí comeria bosta gratuitamente.

Agora, saindo da discussão... E aí, quando se apresentam novamente em Campinas!? ;)

Adriana Scalezi disse...

Otávio, seu texto é simplesmente fantástico!!!
Conheço gente que tenta "diminuir" os outros por gostarem de música essa ou música aquela, como se existisse uma regra única para classificar a música em boa ou ruim... O que vale é o gosto musical de cada um. Somos livres pra tanta coisa... Por que não podemos sê-lo pra escolher um estilo musical?
Parabéns por todos esses anos de sucesso. Já comprei o CD novo... Tà demais!